terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Crônica de início de ano - para mostrar ao 2010 que podemos chamar ele de "NOVO", "ESPERANÇA", "FELIZ", ou do que quisermos


Tempo
Ricardo Rodrigues

Se o tempo conseguisse voltar atrás e apagar os erros do passado. Então, erros não existiriam nunca. Tudo seria perfeito, estático, métrico e, porventura, previsível. Se o tempo parasse de andar só para frente e, no afã de encontrar a perfeição, a mais inatingível de todas as virtudes, resolvesse volver para consertar todas as coisas rotas da nossa existência: a caixa de música da infância, abandonada no porão com os outros brinquedos de gente que não brincava mais; e o travesseiro que cheirava travessura e que, sem querer, sentia cada sonho sonhado, mas não aqueles que faziam a gente sentir a espinha gelada, como o primeiro beijo, e acordar com o coração apertado de viver sonhando errado – assim não se sonha, ou sonha? Acho que tem outro nome, não pode ser chamado de sonho.
Depois da dúvida onírica, do frenesi dos sonhos, o tempo resolveu voltar e consertar também, além dos pesadelos que deixavam tudo que é velho barbado com medo, os nomes. Mudou nome de tudo que era flor: achava que a rosa estava cansada de ser sempre chamada de rosa – às vezes ela era até branca – e que a sempre-viva não podia mexer com a vida dos outros. Essa não pode ser viva. Ia com o vento e de repente se desfazia como se desfazem os sonhos. Não, dos sonhos o tempo já cuidou. Agora é hora de mudar, deixar a caixa de música e o travesseiro para trás, antes que o tempo se irrite e mude o nome deles também. E não é que já mudou? Ganharam o nome de passado e outrora, não importa muito a ordem. Naquele tempo, todo mundo dizia que o tempo era implacável. Mas se nem o futuro ele consegue prever? Isso aí é outra coisa, e de previsão o tempo não gosta. Acabou colocando o nome de destino nesse tal de porvir.
A infância até que chorou, fez cara feia, chamou o pai, mas o tempo passou por ela sem hesitar. Com os nomes trocados, ninguém ia reparar que ela tinha ficado para trás. Mas e os erros? Ninguém mais falou deles. Esses são da infância e o tempo perdoou. Coisa mais sem importância, que nem se fez força para lembrar. E erro se perdoa? Trocaram de nome de novo: agora era meninice e, quando o tempo estava de mau humor, chamava-o traquinagem. Que confusão que faz o tempo. Vai passando sorrateiro, sem fazer muito alvoroço e, quando a gente percebe, já mudou o nome de tudo, até alcunhou a infância de juventude, coitada. Ela que nem tinha espinha, nem barbicha, agora ia ter que estudar para ser alguém na vida. O tempo, cansado de melindre, lançou mão da crueldade e disse pra infância que dali em diante ela não poderia mais chamar o pai. Fez ventar e o levou como a sempre-viva. Bem que disse que não tinha mais esse nome.
A juventude passou muito tempo esquecida, tentando se lembrar dos sonhos que agora chamavam todos realidade. A meninice e a traquinagem ficaram mais sérias. Mas não era tudo perdoado? O tempo, impaciente, explicou que não. Que tudo que existia tinha que ser trocado de nome. Que cada coisa ao seu tempo e que ele também não teria mais que ficar explicando o nome de tudo. Muda e pronto. Deu uma caneta à juventude, tomou-lhe de volta o lápis e lhe disse que os sonhos passariam a chamar planos e que os erros, aqueles que ninguém nem notava de olhar de longe, não seriam mais apagados com borracha de duas cores. A juventude, tamanha soberba e rebeldia, queria trocar de nome também. Se o tempo tinha arrancado tudo que ela lembrava, inclusive o travesseiro, como é que poderia fazer de conta que ainda sonhava? Mas o tempo, mais sábio que todos, apelou ao porvir. Esse, sim, era cheio de truques: mostrou que as coisas só mudam de nomes, como mágica, mas que, no fundo, tudo era a mesma coisa. Que era só o tempo que passava. Até a dor poderia ser mudada, mais colorida. Sumir, não ia.
O tempo a deixou ser chamada de adulta. Apressou-se em deixar o papel e correu atrás dos sonhos. Mas não eram planos? Com o nome mudado de sonhos ficam mais bonitos e parecem ser impossíveis: daí a graça de segui-los. Ninguém admira a lagarta. Por isso, o tempo acabou deixando que virasse borboleta. Então, sonhos que viram planos que viram sonhos. Esta história de ficar trocando de nome está confundindo tudo, menos o tempo, que esse não se confunde nunca, nem de nome, nem de direção. Decidiu que o mundo inteiro, ao menos uma vez, conheceria o amor. Esse era difícil mudar de nome: antes tinham tentado chamar de paixão, de carinho, de respeito, mas nenhuma dessas coisas dizia o que tinha que ser dito. Não era como a caixa de música, o travesseiro, a rosa, a sempre-viva e a borboleta. E se juntasse o nome de tudo isso e o chamasse, como quem não quer nada, de amor? Mas o tempo achou que ficaria muito perfeito e que, para o amor amadurecer, tinha que misturá-lo com os erros, do passado, do presente e do porvir. E esses não se apagam como a gente fazia quando a infância ainda sonhava, não é? Não.
O tempo, mais uma vez senhor do mundo, mostrou que os erros não foram feitos para serem apagados. Se o fossem, as coisas não poderiam mais mudar de nome e tudo seria sempre igual. Aí nem o tempo carecia existir. Que, assim como os sonhos, os erros permitem que todas as coisas mudem de nome, que a caixa de música continue cantando, o travesseiro sonhando e a roda da vida girando e que sejamos, assim, nem perfeitos, nem imperfeitos, mas humanos. O tempo parou para ver cada coisa ao seu tempo e teimou em seguir passando.

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